A disputa sobre as regras que definem o que pode ser certificado como hidrogênio de origem renovável na Europa ganhou novo capítulo. Duas cartas com mensagens opostas chegaram à Comissão Europeia na mesma semana e escancararam um racha entre fabricantes de eletrolisadores e parte dos desenvolvedores e entidades do setor. De um lado, a indústria pede ajustes imediatos no regulamento que trata dos combustíveis renováveis de origem não biológica (RFNBO). Do outro, um grupo de companhias e organizações defende a manutenção da redação atual para evitar mudanças de rota em meio a projetos já estruturados.
A tensão aparece em um momento de decisões sensíveis. Empresas relatam cancelamentos de empreendimentos e apontam custos de capital mais altos, além de incertezas sobre demanda e infraestrutura. Ao mesmo tempo, investidores que planejaram seus negócios com base nas regras vigentes temem que uma flexibilização repentina comprometa contratos, cronogramas e a previsibilidade do mercado. O ponto central é como comprovar, hora a hora e local a local, que a eletricidade usada na eletrólise vem de fontes renováveis contratadas de forma específica, e se o período de transição deveria ser mais longo.
O que aconteceu nesta semana
Fabricantes europeus de eletrolisadores enviaram uma carta a Bruxelas pedindo mudanças urgentes no regulamento do RFNBO. O texto sustenta que exigências consideradas rígidas, como a correlação temporal por hora entre geração e consumo de eletricidade, além de regras de adicionalidade e localização, estariam travando decisões finais de investimento. Segundo o grupo, projetos relevantes teriam sido cancelados nos últimos meses e linhas de produção correm o risco de ficar ociosas caso não haja alívio regulatório.
Na direção oposta, um conjunto de empresas e entidades com atuação global em hidrogênio de origem renovável se manifestou pela manutenção integral das regras. O argumento é que recuar agora criaria incerteza, congelaria investimentos e alteraria as bases de empreendimentos estruturados para cumprir a norma atual. Para esses signatários, os principais desafios do momento estão ligados ao custo do dinheiro, à inflação e à falta de contratos de compra firmes, mais do que às exigências do RFNBO.
Quem está de cada lado
Entre os defensores de maior flexibilidade estão grandes fabricantes de eletrolisadores que atuam na Europa. Eles pedem extensão de períodos de transição e ajustes na forma como a comprovação da fonte elétrica deve ser feita. A tese é que um relaxamento em requisitos de adicionalidade e de correlação temporal permitiria elevar a taxa de utilização dos equipamentos, destravar financiamentos e ganhar escala industrial mais rápido. A indústria ressalta que, sem fábricas ocupadas, a cadeia perde competitividade frente a concorrentes de outras regiões, o que afetaria empregos e encomendas.
Do outro lado estão desenvolvedores de projetos que já incorporaram, nos modelos de negócio, a necessidade de contratar eletricidade renovável dedicada, com comprovação rigorosa ao longo do tempo. Para esse grupo, as regras estabelecem um padrão técnico claro para rastrear a energia usada na eletrólise. Eles temem que uma guinada abra espaço para incertezas contratuais, crie assimetrias entre projetos e gere atrasos justamente por reabrir discussões consideradas encerradas. O recado é direto: previsibilidade regulatória tem valor financeiro concreto.
Entenda o RFNBO e os três pilares de comprovação
O RFNBO é o conjunto de regras europeias que define quando um combustível produzido via eletrólise pode receber a certificação de “renovável de origem não biológica”. O objetivo é estabelecer critérios verificáveis para a energia que alimenta os eletrolisadores, criando um padrão reconhecido para comércio, tributação e metas de consumo setoriais. A certificação afeta contratos, preços e acesso a programas de apoio, por isso o desenho do regulamento tem efeito direto sobre a viabilidade dos projetos.
Três pilares sustentam essa verificação: adicionalidade, correlação temporal e correlação geográfica. Em síntese, adicionalidade trata de garantir que a eletricidade usada não desloque consumo existente; correlação temporal exige que a geração renovável contratada ocorra no mesmo período do consumo do eletrolisador; e correlação geográfica busca assegurar que a fonte e a carga estejam na mesma área elétrica relevante. A combinação desses pilares procura reduzir lacunas de comprovação e dar confiança ao selo.
Adicionalidade: o que é e por que importa para o mercado
Adicionalidade significa, na prática, contratar ou viabilizar capacidade nova de geração renovável para alimentar o eletrolisador. A lógica é separar o consumo do hidrogênio dos demais usos do sistema elétrico, evitando que o projeto apenas “puxe” energia já disponível na rede. Em muitos casos, isso se traduz na construção de parques eólicos ou solares dedicados, ou na assinatura de contratos de longo prazo com novas usinas. Para investidores, esse requisito ajuda a justificar a expansão de oferta elétrica e dá lastro físico ao produto final.
Do ponto de vista operacional, a adicionalidade se conecta à taxa de uso do eletrolisador. Se a planta depende de um parque eólico específico, por exemplo, o perfil de geração pode reduzir as horas cheias de operação. Por isso a pressão por mecanismos que permitam compor portfólios de fontes e janelas de operação mais elásticas, equilibrando custos e comprovação. O debate atual inclui se o período de transição deveria ser ampliado para dar tempo à expansão de usinas dedicadas e à formação de novos contratos de energia.
Correlação temporal: do mensal ao horário
A correlação temporal determina a janela de comparação entre a geração renovável contratada e o consumo do eletrolisador. Em fases iniciais de implementação, a prática tem sido aceitar janelas mais amplas, como mensal, que permitem compensar variações no perfil de geração. Passada a transição, a exigência tende a ficar mais restrita, chegando ao nível horário. Esse nível de precisão exige medições robustas, integração de dados e um arranjo comercial capaz de acomodar variações de preço e disponibilidade ao longo do dia.
Quanto menor a janela, mais desafiador é manter alta a taxa de utilização dos equipamentos. A indústria argumenta que a exigência horária pode empurrar muitos projetos para fatores de capacidade baixos, encarecendo o hidrogênio por quilograma. Já os defensores da manutenção da regra afirmam que o sinal horário reflete a realidade do sistema elétrico, incentiva soluções de armazenamento e evita alegações de origem renovável que, na prática, não se sustentariam quando se olha a operação no detalhe.
Correlação geográfica: a importância da área elétrica
A correlação geográfica liga a fonte de eletricidade ao local do eletrolisador dentro de uma mesma área elétrica ou zona de preço. A ideia é que a energia contratada seja fisicamente relevante para o ponto de consumo, respeitando restrições de transmissão e evitando “compensações” distantes que não reflitam o fluxo real do sistema. Em mercados com redes integradas, definir essa área exige olhar para interconexões, gargalos e regras de balanço entre países vizinhos.
Na prática, a regra de localização impacta decisões de onde instalar eletrolisadores, como desenhar contratos de fornecimento e quais portos ou polos industriais têm mais chance de atrair investimentos. Para projetos que pensam em exportar derivados como amônia, a proximidade com hubs logísticos e nós de transmissão pode pesar tanto quanto o recurso eólico ou solar disponível.
O que pedem os fabricantes de eletrolisadores
Os fabricantes defendem três ajustes principais: alongar prazos de transição para adicionalidade; flexibilizar a correlação temporal, substituindo a exigência horária por janelas diárias ou mensais por mais tempo; e facilitar arranjos de contratação que combinem múltiplas fontes de geração. A expectativa é elevar a taxa de utilização dos equipamentos, reduzir o custo nivelado do hidrogênio e dar previsibilidade às fábricas. A carta enviada a Bruxelas ressalta que linhas de produção já foram dimensionadas e que um vazio de pedidos pode levar à perda de capacidade instalada no continente.
Segundo a indústria, há mais de cinquenta iniciativas que não avançaram recentemente. O diagnóstico associa esse freio a uma combinação de fatores: juros elevados, inflação de componentes, incertezas sobre contratos de longo prazo para compra de hidrogênio e a própria exigência regulatória, que na visão dos signatários restringe janelas operacionais e retira flexibilidade dos modelos. Eles argumentam que, sem ajustes, a Europa corre o risco de importar equipamentos e perder protagonismo em uma cadeia que ela ajudou a estruturar.
Por que a flexibilidade é central na visão industrial
Eletrolisadores têm forte componente de custo fixo. Quanto mais horas anuais operam, menor o custo por quilograma produzido. Em sistemas elétricos com grande participação de eólica e solar, a produção varia bastante ao longo do dia e das estações. Exigir correlação horária sem um período de adaptação mais longo, dizem os fabricantes, comprime as horas “economicamente viáveis” de operação, sobretudo quando o preço da eletricidade no mercado de curto prazo dispara em momentos de baixa disponibilidade de renováveis.
Mais flexibilidade permitiria montar carteiras de PPAs de diferentes usinas, incluir armazenamento e até combinar deslocamentos de carga com sinal de preço. O setor também pede clareza sobre como comprovar adicionalidade quando há modernização de parques existentes ou repotenciação, e sobre a possibilidade de usar certificação baseada em dados quase em tempo real, com auditorias de terceiros, para reduzir o atrito burocrático sem afrouxar o controle.
O que defendem desenvolvedores e entidades de hidrogênio renovável
A carta em sentido contrário afirma que o mercado já se organizou para cumprir o RFNBO tal como está. Para esse grupo, o padrão atual evita distorções e garante que o produto tenha rastreabilidade robusta. A avaliação é que retroceder criaria incerteza jurídica, atrasaria cronogramas e desincentivaria investimentos que apostaram nas regras vigentes. O grupo também sustenta que a maior parte das dificuldades recentes vem do ambiente macroeconômico e da falta de contratos de offtake firmes com grandes consumidores.
Outro ponto é a competição global. Mudanças frequentes em regras reduzem a credibilidade de qualquer certificação. Em cadeias de exportação, compradores exigem padrões consistentes e comparáveis entre regiões. Por isso, os signatários do segundo documento pedem que a Comissão Europeia mantenha o cronograma de revisão já previsto e concentre-se em acelerar instrumentos de demanda, como leilões de contratos por diferença e metas setoriais que sinalizem volumes estáveis de compra por vários anos.
Impactos práticos em aço, aviação e navegação
A forma de comprovação do RFNBO afeta diretamente a conta de projetos em setores de difícil substituição de insumos. Na siderurgia, rotas que usam hidrogênio para redução direta do minério (DRI) necessitam fornecimento contínuo e confiável. Se a correlação temporal for horária desde cedo, muitas plantas dependerão de uma combinação de PPAs, armazenamento elétrico e, em alguns casos, produção excedente em janelas favoráveis para compensar períodos de escassez. Isso altera o CAPEX total e pode exigir contratos de eletricidade mais sofisticados, com cláusulas de balanceamento e flexibilidade operacional.
Na aviação, combustíveis sintéticos derivados de hidrogênio e CO₂ capturado precisam de volumes regulares para atender refinarias e misturas específicas. A exigência de comprovação horária pode empurrar parte da produção para janelas de maior disponibilidade renovável, exigindo adequações na logística de insumos e subprodutos. No transporte marítimo, cadeias de amônia e metanol enfrentam dilemas semelhantes, com necessidade de garantir janelas de operação compatíveis com carregamentos e a programação portuária. A calibragem do RFNBO influencia, portanto, não só o custo por tonelada, mas também o desenho de toda a cadeia logística.
Siderurgia: DRI com hidrogênio e variáveis de operação
Projetos de DRI requerem fornecimento de gás de processo com pureza e pressão específicas. Intermitência elevada na produção de hidrogênio encarece buffers, tanques e compressores. Uma correlação mensal, em fase de transição, facilita a montagem de um perfil de operação com menos paradas, enquanto a correlação horária demanda estratégias de despacho mais finas, inclusive arbitragem entre energia de PPA e mercado spot. Em ambos os casos, o contrato de compra de aço de baixo carbono por clientes âncora torna-se decisivo para fechar a conta.
Um caminho que surge nos estudos é combinar eletrolisadores com produção de ferro esponja e fornos elétricos, escalonando turnos e manutenções para janelas de menor custo de eletricidade. Isso reduz paradas não planejadas e melhora o fator de capacidade agregado. O regulamento, ao exigir rastreabilidade temporal, empurra os projetos a investirem desde o início em sistemas de medição e comando que integrem geração, armazenamento e consumo no mesmo painel de controle.
Aviação: e-querosene e contratos de longo prazo
Refinarias que pretendem produzir e-querosene dependem de hidrogênio e de CO₂ com alto grau de pureza. A exigência de comprovação por hora aumenta a necessidade de sincronismo entre fornecimento dos insumos e disponibilidade dos eletrolisadores. Como as companhias aéreas costumam planejar compras com bastante antecedência, contratos take-or-pay e mecanismos de reajuste por variação de preço da eletricidade ganham espaço. O RFNBO, ao estabelecer critérios uniformes, dá base para que esses contratos sejam comparáveis entre projetos e mercados.
Fabricantes e desenvolvedores argumentam que uma transição mais longa na correlação temporal permitiria usar carteiras de PPAs com perfis complementares, reduzindo o custo médio da energia e, consequentemente, do combustível sintético. Já quem defende a regra mais estrita avalia que essa exigência acelera a adoção de armazenamento e a integração com mercados de flexibilidade, criando sinais de preço que valorizam plantas mais eficientes no uso da eletricidade.
Navegação: amônia, metanol e janelas portuárias
Em hubs marítimos, a programação de cargueiros requer previsibilidade em dias e horas. A correlação horária impõe uma disciplina que precisa ser traduzida em estoques intermediários de amônia ou metanol e em contratos de energia alinhados a esse calendário. Projetos costumam avaliar a construção de tanques maiores, linhas de carregamento redundantes e mix de fontes de eletricidade para suavizar variações. Esse conjunto de decisões define a estrutura de custos e a capacidade de atender frotas internacionais com regularidade.
Nos estudos de viabilidade, a sensibilidade a preço de energia domina. Pequenas mudanças na janela temporal de comprovação podem alterar significativamente a taxa interna de retorno. Ao mesmo tempo, operadores portuários observam que um padrão estável de certificação simplifica auditorias, seguros e financiamentos de infraestrutura, reduzindo o risco percebido por bancos e agências de crédito à exportação.
Custos, financiamento e instrumentos de demanda
O custo nivelado do hidrogênio depende de quatro blocos: preço da eletricidade, fator de utilização do eletrolisador, CAPEX total (incluindo conexões e armazenamento) e custo de capital. O RFNBO interage com esse quadro ao definir quão “apertada” deve ser a comprovação de origem da energia em cada janela temporal. Quanto mais estrito o requisito, maior tende a ser a necessidade de investimentos complementares para manter a produção estável. Por isso o assunto é tratado como condição crítica de bancabilidade, tanto por fabricantes quanto por desenvolvedores e compradores.
Para fechar a conta, projetos dependem de instrumentos de demanda que reduzam a volatilidade de receitas. Leilões de contratos por diferença, metas obrigatórias setoriais e acordos de compra de longa duração com grandes consumidores são algumas das ferramentas adotadas na Europa. A previsibilidade desses instrumentos dialoga com a previsibilidade regulatória: se a regra muda frequentemente, o prêmio de risco cresce e o custo do dinheiro sobe. Se as regras são estáveis, os agentes se sentem mais confiantes para assumir compromissos de dez a quinze anos.
O papel do armazenamento e da gestão de energia
A exigência de correlação temporal aberta por janelas curtas aumenta a relevância do armazenamento elétrico e da gestão ativa de energia. Baterias, contratos de flexibilidade e sistemas de previsão de vento e sol passam a integrar o núcleo do projeto. O objetivo é deslocar parte do consumo para as horas em que a energia contratada está disponível, mantendo a produção de hidrogênio dentro dos critérios do RFNBO. Essa integração exige medição em alta resolução, telemetria confiável e auditoria independente de dados.
Outra peça é o armazenamento do próprio hidrogênio, que funciona como amortecedor entre produção e consumo final. Tanques, compressores e unidades de liquefação entram no cálculo quando a intermitência elétrica não pode ser compensada apenas via mercado. Há, portanto, uma busca por portfólios híbridos: PPAs com perfis complementares, contratos de curto prazo para cobrir lacunas, baterias para equalização intra-horária e reservatórios de hidrogênio para equalização diária ou semanal.
Calendário regulatório e pontos de atenção em Bruxelas
Os documentos submetidos à Comissão Europeia pedem decisões ainda no curto prazo. Porém, há um cronograma de avaliação regulatória já mapeado pelas autoridades, com revisões periódicas para medir efeitos e eventuais ajustes. Um marco citado pelas empresas é a avaliação de impacto prevista para 2028. Até lá, a tendência é manter a coleta intensiva de dados e acompanhar a implementação prática do RFNBO em diferentes Estados-membros, incluindo como as operadoras de rede e os emissores de certificados lidam com auditorias e fluxos de informação.
Enquanto o debate avança, plataformas de certificação e registradores nacionais seguem adaptando sistemas para receber medição de alta frequência, com carimbo de data e hora, e integrar essa informação a certificados de origem. Projetos que forem a mercado durante esse período precisarão embutir cláusulas de adaptação contratual, prevendo como lidar com mudanças futuras sem paralisar obras ou operações. O foco recai na previsibilidade: regras claras, dados auditáveis e prazos compatíveis com investimentos de grande porte.
O que isso significa para o Brasil
Para empresas brasileiras com planos de exportar hidrogênio e derivados para a Europa, o RFNBO é referência. Mesmo projetos voltados a outros mercados tendem a usar o padrão europeu como base de comparação, pela capilaridade dos compradores e exigência de rastreabilidade. Isso vale para cadeias de amônia, metanol e combustíveis sintéticos. A principal mensagem do debate atual é que comprovação temporal e contratos de energia com usinas dedicadas não são detalhes: são o coração do projeto e precisam ser definidos logo nas etapas iniciais de modelagem.
Hubs portuários brasileiros que miram exportação para a Europa podem se beneficiar ao planejar desde cedo integrações entre geração renovável, armazenamento e medição granular. Projetos próximos a linhas de transmissão robustas e com acesso a áreas de alto recurso eólico ou solar têm vantagem. Também é recomendável estruturar PPAs com prazos longos e combinar perfis de geração para reduzir a exposição a janelas de baixa produção. Quanto mais clara for a trilha de dados desde a usina até o eletrolisador, maior a chance de reconhecimento em certificações exigidas por compradores europeus.
Boas práticas para projetos que visam a Europa
Uma lista de verificação ajuda a reduzir riscos: mapear desde o início a área elétrica e as interfaces com o operador do sistema; definir arquitetura de medição com precisão horária e auditoria externa; negociar PPAs com cláusulas de flexibilidade e garantias de entrega; avaliar a necessidade de baterias e tanques para equalização; e construir um repositório de dados para emissão de certificados. Esses passos elevam a qualidade do dossiê técnico e reduzem a chance de retrabalho quando a planta entra em fase de comissionamento.
Outra recomendação é manter diálogo próximo com potenciais compradores — siderúrgicas, companhias aéreas, tradings e armadores — para calibrar especificações de pureza do hidrogênio ou do derivado, janelas de entrega, prazos contratuais e penalidades. Essa sintonia evita surpresas na fase comercial e ajusta o tamanho do projeto à disposição real de compra. Em mercados de exaustão de capital, contratos de longo prazo com partes de alta qualidade de crédito podem ser o fator decisivo para atrair financiamento.
- Definir cedo a estratégia de comprovação temporal e geográfica;
- Projetar o mix entre PPAs, mercado spot e armazenamento;
- Implementar medição certificável e auditorias independentes;
- Alinhar offtakers e financiadores ao mesmo padrão de dados.
Como medir e comprovar a origem da eletricidade
Projetos voltados ao RFNBO precisam de um ecossistema de dados confiável. Isso inclui medidores com registro horário no ponto de conexão das usinas e no barramento dos eletrolisadores; sistemas de telemetria com integridade e carimbo de tempo; e trilhas de auditoria que permitam verificar, a posteriori, que a energia consumida corresponde à energia contratada. Em arranjos com múltiplas usinas, é essencial mostrar como o portfólio atende o consumo hora a hora, respeitando limites de transmissão e perdas técnicas.
Certificados de origem e garantias lastreadas em dados operacionais devem ser reconciliados com o calendário de produção. Em muitos casos, a solução envolve plataformas digitais que integram PPAs, mercado de curto prazo e despacho dos eletrolisadores. O objetivo é transformar requisitos em rotinas automáticas: quando a energia contratada está disponível, a planta opera; quando não está, o sistema avalia alternativas — armazenamento, compra no mercado ou redução de carga — respeitando as regras do RFNBO. Auditorias periódicas validam esse processo e reduzem riscos de não conformidade.
Ferramentas e práticas de verificação
Entre as ferramentas usadas estão medidores digitais com comunicação segura, plataformas de gestão de energia, modelos de previsão de geração e consumo, e softwares de reconciliação horária. Também ganham espaço contratos padronizados que descrevem, com precisão, os passos de verificação e as responsabilidades de cada parte. Essa padronização facilita o trabalho de auditores e reduz divergências na interpretação de dados em fronteiras de rede ou entre diferentes países.
Projetos maduros costumam adotar um “livro de dados” desde a fase de engenharia, com indicadores-chave e protocolos de qualidade. A governança de dados inclui backups, trilhas de alteração e controles de acesso. Quando bem implementada, essa camada de governança encurta prazos de certificação e melhora a percepção de risco por financiadores, refletindo em spreads menores e maior competição entre bancos interessados.
Exemplos numéricos e cenários para modelagem
Considere um eletrolisador de 100 MW planejado para operar 4.000 horas por ano com energia contratada de parques eólicos e solares. Se a regra exigir correlação mensal, a planta pode operar mais tempo em períodos de alta geração e compensar em semanas menos favoráveis, mantendo a meta anual. Numa exigência horária, a operação precisa seguir o pulso do portfólio contratado, o que tende a reduzir as horas a plena carga e elevar a necessidade de baterias para acomodar rampas e variações rápidas na geração.
Ao mudar a janela temporal, o fator de capacidade efetivo do eletrolisador pode variar dezenas de pontos percentuais. Isso altera o custo do hidrogênio por quilograma e pode decidir a competitividade frente a outras rotas de suprimento. Modelagens realistas combinam séries históricas de vento e solar, projeções de preço de curto prazo e simulações de despacho com restrições físicas da rede. O resultado é um envelope de custos — não um número único — que serve para negociar PPAs, dimensionar armazenamento e fechar contratos de venda com margens adequadas.
Portfólios híbridos e efeito na taxa de utilização
Misturar parques eólicos e solares reduz a variabilidade intradiária e sazonal. Em regiões com regimes complementares de vento e sol, a combinação pode aumentar horas úteis e diminuir a necessidade de comprar energia de terceiros. Quando a correlação é horária, esse ganho é ainda mais relevante. Porém, a assinatura de múltiplos PPAs exige coordenação contratual e sistemas de medição capazes de alocar, com precisão, a energia de cada ativo ao consumo do eletrolisador.
Além disso, baterias podem atuar como “ponte” para cobrir lacunas de minutos a horas. O dimensionamento ótimo depende do custo do equipamento, do diferencial de preço da energia ao longo do dia e da severidade das janelas de comprovação. Alguns projetos avaliam inclusive a produção intencional de excedentes em horas muito baratas para recompor estoques, estratégia que requer tanques e compressores prontos para ciclos mais intensos de carga e descarga.
Perguntas frequentes dos leitores
O RFNBO vale só para Europa? O regulamento é europeu, mas influencia cadeias globais porque compradores do bloco tendem a exigir conformidade para reconhecer o produto como elegível em metas e benefícios locais. Assim, projetos fora da Europa que miram esse mercado usam o RFNBO como referência, mesmo quando há regras domésticas diferentes. Essa “força gravitacional” regulatória explica por que a discussão interessa também a produtores de outras regiões, como América do Sul, Oriente Médio e África.
E quem não busca o mercado europeu? Mesmo assim, a padronização de dados e as práticas de medição em alta resolução costumam ser aproveitadas. Isso facilita auditorias, financiamento e comparabilidade entre projetos. Também abre portas para vender a diferentes destinos, sem precisar redesenhar processos básicos de comprovação a cada negociação.
Glossário essencial
Adicionalidade: exigência de contratar ou viabilizar geração renovável nova para abastecer o eletrolisador. Busca garantir que o consumo para produção de hidrogênio não seja atendido por energia que já tinha outro destino no sistema elétrico.
Correlação temporal: regra que compara a janela de geração da eletricidade contratada com a janela de consumo do eletrolisador. Pode ser mensal, diária ou horária, a depender da fase de implementação e do desenho regulatório. Quanto mais curta a janela, maior a necessidade de sincronismo e, em geral, de soluções de armazenamento.
Correlação geográfica: exigência de que a geração e o consumo estejam na mesma área elétrica ou zona de preço relevante, respeitando as condições de fluxo da rede e evitando compensações distantes que não reflitam a realidade do sistema.
RFNBO: sigla em inglês para combustíveis renováveis de origem não biológica. No contexto do hidrogênio, define critérios para que a eletrólise seja reconhecida como abastecida por eletricidade de fonte renovável contratada de forma adequada e comprovável.
O que observar a partir de agora
Os próximos meses devem trazer negociações intensas entre indústria, desenvolvedores, operadores de rede e autoridades. O foco estará em prazos de transição, forma de comprovação por hora e reconhecimento de portfólios híbridos com mais de uma fonte de geração. Em paralelo, instrumentos de demanda tendem a ganhar espaço para reduzir riscos de receita e encorajar decisões finais de investimento, inclusive por meio de leilões e contratos de longa duração com compradores âncora.
Para leitores e empresas que acompanham o tema, três sinais merecem atenção: a evolução de custos de capital, a estabilidade das regras e a capacidade de medir e auditar dados em alta frequência. Onde esses três pontos convergirem de forma positiva, os projetos tendem a sair do papel mais rápido. Onde houver incerteza, a resposta usual será cautela, até que a poeira regulatória assente e os números fechem com margem de segurança.
Última atualização em 10 de outubro de 2025