Reforma elétrica e fim de subsídios: impacto jurídico e no preço da conta de luz

Reforma elétrica e fim de subsídios: impacto jurídico e no preço da conta de luz

Reforma do Setor Elétrico e o Fim do Desconto no Fio: Aspectos Jurídicos e Econômicos

A Medida Provisória nº 1.300/2025, publicada em 21 de maio, propõe mudanças relevantes ao setor elétrico brasileiro. Especificamente, ela aborda a extinção do desconto nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição (TUST e TUSD) ao consumo de energia elétrica de fontes incentivadas – o famigerado “desconto no fio”. A proposta limita a aplicação desses descontos ao término dos contratos vigentes e aos montantes registrados até o final de 2025.

Este debate não é novo. Há anos, diversos agentes e reguladores do setor discutem a necessidade urgente de revisar a alocação dos custos e benefícios associados às políticas públicas e à expansão do setor elétrico. O “desconto no fio” sempre esteve no centro dessa discussão, desempenhando um papel crucial na expansão e consolidação da matriz de energias renováveis no Brasil. A MP 1.300/2025 reacende essa discussão e traz à tona a necessidade de uma análise aprofundada das implicações jurídicas e econômicas dessa possível mudança.

Breve Histórico do Desconto no Fio

O incentivo do “desconto no fio” foi criado há mais de duas décadas com um objetivo claro: impulsionar os investimentos em geração de energia a partir de fontes renováveis, que, naquela época, eram consideravelmente menos competitivas em comparação com as fontes tradicionais. Era uma forma de dar um “empurrãozinho” para as energias limpas.

A lógica por trás do desconto era simples: reduzir uma parcela significativa dos custos de geração e consumo de energia para oferecer uma vantagem competitiva ao consumo de energias incentivadas – ou seja, as renováveis – em detrimento das fontes convencionais, como as termelétricas movidas a combustíveis fósseis. Era um jogo de incentivos para mudar a matriz energética do país.

A Evolução Legislativa do Benefício

Em 1998, a Lei nº 9.648 introduziu o §1º no art. 26 da Lei n. 9.427/1996, conferindo à ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) a responsabilidade de estabelecer reduções nas tarifas de uso das redes. O objetivo era garantir a competitividade das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), que, apesar de serem fontes renováveis, ainda enfrentavam dificuldades para competir com as grandes hidrelétricas e outras fontes.

Posteriormente, as Leis nº 10.762/2003, nº 13.203/2015 e nº 13.360/2016 expandiram consideravelmente o leque de beneficiários do “desconto no fio”, incluindo outras fontes de energia renovável, como a solar, a eólica, a biomassa, a cogeração qualificada e até mesmo a energia gerada a partir de resíduos sólidos urbanos. Essa expansão refletiu o crescente interesse do país em diversificar sua matriz energética e reduzir a dependência de combustíveis fósseis.

O Regime de Transição da Lei nº 14.120/2021

Com a consolidação do setor de energias renováveis no Brasil, a Lei Federal nº 14.120/2021 instituiu um regime de transição para o acesso ao benefício do “desconto no fio”. Essa lei representou uma tentativa de equilibrar os interesses dos investidores que já haviam apostado nas energias renováveis com a necessidade de modernizar o setor elétrico e torná-lo mais eficiente e competitivo.

Posteriormente, esse regime de transição foi prorrogado com base na Medida Provisória 1.212/2024. Essa prorrogação garantiu que os projetos outorgados com base nas regras anteriores pudessem manter os descontos por um período de até 35 anos, reconhecendo a expectativa legítima dos empreendedores que mobilizaram capital com base no marco legal vigente. Era uma forma de dar segurança jurídica aos investidores e evitar um choque abrupto no mercado.

A MP nº 1.300/2025 e o Reacendimento do Debate

A Medida Provisória nº 1.300/2025, ao propor o fim do “desconto no fio” a partir da limitação dos descontos aos contratos vigentes e aos montantes registrados até o final de 2025, reacende um debate crucial sobre o futuro do setor elétrico brasileiro. Essa medida coloca em xeque a sustentabilidade de diversos projetos de energia renovável e levanta questões importantes sobre a segurança jurídica dos investimentos no setor.

Diante desse cenário, torna-se fundamental analisar cuidadosamente os aspectos jurídicos e econômicos envolvidos na concessão e na eventual extinção desse incentivo. É preciso avaliar os impactos dessa mudança para os consumidores, para os investidores, para o meio ambiente e para a economia do país como um todo. A decisão sobre o futuro do “desconto no fio” terá consequências de longo alcance para o setor elétrico brasileiro.

Ótica Jurídica da Reforma

De acordo com o artigo 21, XII, “b”, da Constituição Federal, a exploração dos serviços e instalações de energia elétrica é de competência exclusiva da União. Isso significa que o governo federal tem o poder de regular e fiscalizar todas as atividades relacionadas à geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica no país.

Para a geração de energia renovável, o legislador optou, em geral, pelo regime de autorização. Esse regime permite que os empreendedores construam e operem usinas de energia renovável sem a necessidade de uma concessão, desde que cumpram os requisitos técnicos e ambientais estabelecidos pela ANEEL. Essa flexibilidade facilita a entrada de novos agentes no mercado e estimula a diversificação da matriz energética. A energia gerada pode ser vendida a preços de mercado, tanto no ambiente livre (onde os consumidores podem escolher seus fornecedores) quanto nos leilões do ambiente regulado (onde os preços são definidos por meio de licitação, com um teto estabelecido).

A Distinção entre Serviços de Monopólio e Serviços Competitivos

Desde a desverticalização do setor elétrico nos anos 1990, o legislador estabeleceu uma clara distinção entre os serviços considerados monopólios naturais (transmissão e distribuição) e os serviços passíveis de competição (geração e comercialização). Essa distinção é fundamental para entender a lógica de funcionamento do mercado elétrico brasileiro.

Os serviços de transmissão e distribuição são considerados monopólios naturais porque exigem investimentos em infraestrutura de grande porte e apresentam economias de escala significativas. Em outras palavras, é mais eficiente ter uma única empresa responsável por construir e operar as redes de transmissão e distribuição do que ter várias empresas competindo entre si. Esses serviços são prestados em regime de serviço público e remunerados por tarifas, que são reguladas pela ANEEL para garantir que os consumidores paguem preços justos e razoáveis.

O Papel do Estado na Regulação da Atividade Econômica

Ainda que as atividades de geração e comercialização de energia sejam regidas por um regime competitivo, isso não impede o Estado de adotar mecanismos de fomento para essas atividades em casos específicos. O Estado tem um papel fundamental na regulação e orientação da atividade econômica, influenciando a oferta e a demanda de produtos e serviços.

Nos termos do artigo 174 da Constituição Federal, cabe ao Estado regular e orientar a atividade econômica, promovendo o desenvolvimento social e econômico do país. Isso significa que o governo pode criar incentivos fiscais, linhas de crédito subsidiadas e outras políticas públicas para estimular o investimento em setores estratégicos, como o de energias renováveis. O objetivo é corrigir falhas de mercado, promover a inovação e garantir o acesso universal a serviços essenciais.

Análise Econômica da Medida Provisória

A Medida Provisória (MP) que visa extinguir o desconto no fio carrega consigo um impacto econômico complexo, que se desdobra em diferentes camadas do setor elétrico. É crucial analisar quem ganha, quem perde e quais são as consequências de longo prazo para o desenvolvimento sustentável da matriz energética brasileira.

Por um lado, a eliminação do subsídio pode trazer um alívio para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo setorial que é alimentado pelas tarifas de energia de todos os consumidores. Esse alívio financeiro pode, em tese, resultar em uma moderação nas tarifas de energia para os consumidores cativos, aqueles que não têm a opção de escolher seu fornecedor.

Impacto nos Investimentos em Energias Renováveis

Por outro lado, a medida pode ter um impacto significativo nos investimentos em energias renováveis, especialmente nos projetos de menor porte. O desconto no fio, como vimos, foi um incentivo crucial para viabilizar esses projetos, que muitas vezes enfrentam dificuldades para competir com as fontes de energia tradicionais.

Com a extinção do desconto, esses projetos podem se tornar menos atrativos para os investidores, o que pode levar a uma desaceleração no ritmo de expansão das energias renováveis no Brasil. Isso pode comprometer os objetivos de diversificação da matriz energética e de redução das emissões de gases de efeito estufa, que são cada vez mais urgentes diante das mudanças climáticas.

O Dilema da Competitividade e da Sustentabilidade

A MP levanta um debate importante sobre o equilíbrio entre a competitividade do setor elétrico e a necessidade de promover a sustentabilidade. É inegável que o desconto no fio gerou distorções no mercado, beneficiando alguns agentes em detrimento de outros.

No entanto, é preciso avaliar cuidadosamente se a eliminação desse incentivo é a melhor forma de corrigir essas distorções. Uma alternativa seria aprimorar os mecanismos de alocação dos custos e benefícios da expansão das energias renováveis, buscando soluções que incentivem a eficiência e a inovação, sem comprometer a viabilidade dos projetos.

O Cenário de Transição Energética Global

É importante lembrar que o Brasil está inserido em um contexto global de transição energética, em que diversos países estão buscando alternativas para reduzir sua dependência de combustíveis fósseis e investir em fontes de energia limpa. O fim do desconto no fio pode colocar o Brasil em desvantagem em relação a outros países que estão oferecendo incentivos para atrair investimentos em energias renováveis.

Nesse cenário, é fundamental que o governo brasileiro adote uma estratégia clara e coerente para o setor elétrico, que combine a busca por eficiência e competitividade com a promoção da sustentabilidade e da segurança energética. A extinção do desconto no fio pode ser um passo nessa direção, desde que seja acompanhada de outras medidas que incentivem o desenvolvimento de um mercado de energias renováveis mais dinâmico e competitivo.

Alternativas à Extinção do Desconto no Fio

Em vez de simplesmente extinguir o desconto no fio, o governo poderia explorar alternativas que permitam alcançar os objetivos de eficiência e sustentabilidade de forma mais equilibrada. Uma dessas alternativas seria a criação de um sistema de leilões específicos para projetos de energias renováveis, com preços diferenciados que reflitam os benefícios ambientais e sociais dessas fontes de energia.

Outra opção seria a criação de um mercado de certificados de energia renovável, em que os consumidores pudessem comprar certificados para compensar o consumo de energia de fontes não renováveis. Esse mercado incentivaria a demanda por energias limpas e geraria receita para os projetos de energias renováveis.

A Modernização da CDE

A Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) é um instrumento fundamental para o financiamento de políticas públicas no setor elétrico, mas sua gestão precisa ser modernizada para garantir a eficiência e a transparência na alocação dos recursos. Uma das medidas que poderiam ser adotadas é a revisão dos critérios de elegibilidade para os benefícios da CDE, buscando direcionar os recursos para os projetos que geram os maiores benefícios para a sociedade.

Além disso, é importante fortalecer a fiscalização e o controle da CDE, para evitar fraudes e desvios de recursos. A transparência na gestão da CDE é essencial para garantir a confiança dos consumidores e dos investidores no setor elétrico.

O Incentivo à Geração Distribuída

A geração distribuída, que consiste na produção de energia elétrica em pequena escala, próxima aos centros de consumo, tem um grande potencial para impulsionar o desenvolvimento de energias renováveis no Brasil. O governo poderia criar incentivos para a instalação de painéis solares em residências, empresas e edifícios públicos, gerando empregos e renda e reduzindo a dependência da rede elétrica.

Além disso, é importante simplificar os processos de conexão da geração distribuída à rede elétrica, para facilitar o acesso dos consumidores a essa tecnologia. A geração distribuída pode contribuir para a diversificação da matriz energética, a redução das perdas na transmissão e distribuição e a democratização do acesso à energia.

A Promoção da Eficiência Energética

A eficiência energética é uma das formas mais eficazes de reduzir o consumo de energia e mitigar os impactos ambientais do setor elétrico. O governo poderia criar programas de incentivo à substituição de equipamentos antigos e ineficientes por equipamentos novos e eficientes, como lâmpadas LED, refrigeradores e ar-condicionado.

Além disso, é importante promover a conscientização dos consumidores sobre a importância da eficiência energética, incentivando a adoção de hábitos de consumo mais sustentáveis. A eficiência energética pode reduzir a demanda por energia, diminuir a necessidade de investimentos em novas usinas e redes de transmissão e distribuição e contribuir para a redução das emissões de gases de efeito estufa.

Futuras Perspectivas para o Setor Elétrico Brasileiro

O setor elétrico brasileiro está passando por um momento de transformação, impulsionado pela crescente demanda por energia, pelas mudanças climáticas e pela busca por fontes de energia mais limpas e sustentáveis. A Medida Provisória que propõe o fim do desconto no fio é apenas um dos muitos desafios que o setor terá que enfrentar nos próximos anos.

Para garantir o desenvolvimento sustentável do setor elétrico, é fundamental que o governo, os investidores e os consumidores trabalhem juntos para construir um mercado de energia mais eficiente, competitivo e transparente. Isso exige a adoção de políticas públicas que incentivem a inovação, a eficiência e a sustentabilidade, além de um diálogo aberto e transparente entre todos os stakeholders.





Última atualização em 20 de junho de 2025

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