Ok, aqui está o artigo conforme suas instruções.
O Dilema de Romeu e Julieta no Mercado de Gás Natural: Uma Tragédia Tarifária em Potencial?
A tragédia, como gênero teatral clássico, tem a nobre missão de nos educar através do sofrimento alheio. Observamos personagens com falhas trágicas, mergulhados em angústias e desastres, para que possamos aprender sem precisar trilhar o mesmo caminho doloroso. Shakespeare, mestre das tragédias, nos ensina através de Otelo, Hamlet e Romeu, como insegurança, indecisão e impulsividade, por mais humanas que sejam, podem levar à ruína pessoal e social.
No cenário atual do mercado de gás natural no Brasil, as lições de Shakespeare ressoam com força. A iminente revisão das tarifas de transporte, em um contexto de fim dos contratos legados, nos remete à clássica história de Romeu e Julieta. Assim como a paixão impetuosa dos jovens amantes os conduziu a um destino trágico, a busca por soluções rápidas e simplistas no mercado de gás pode nos levar a um desfecho igualmente infeliz. A analogia serve como um alerta: a pressa e a falta de visão estratégica podem ser tão perigosas quanto a inércia.
A Transparência da ANP e as Expectativas do Mercado: Uma Facada na Confiança?
A recente decisão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) de divulgar as planilhas utilizadas pela Petrobras para calcular a tarifa de transporte do Contrato Legado Malhas Sudeste foi recebida com grande entusiasmo pelo mercado. A medida, vista como um passo crucial para aumentar a transparência na formação de preços, gerou uma onda de especulações sobre os possíveis impactos da divulgação de dados semelhantes nos processos de revisão tarifária das transportadoras.
Surgiram questionamentos sobre se esses dados revelariam que os investimentos realizados já estariam totalmente depreciados, eliminando qualquer valor econômico a ser remunerado através da Base Regulatória de Ativos (BRA) das transportadoras ao término dos contratos legados. Embora o desejo por preços mais baixos seja compreensível e legítimo, é crucial analisar as planilhas de cálculo com cautela e evitar conclusões precipitadas. Afinal, como Frei Lourenço sabiamente aconselhou ao impulsivo Romeu: "Seja sábio e vá devagar; tropeçam os que correm depressa."
**Breve Histórico da Regulação da ANP Sobre o Cálculo da Tarifa de Transporte**
Antes de 2005, a regulação sobre os trâmites e a metodologia de cálculo da tarifa de transporte era praticamente inexistente. A ANP se limitava a emitir orientações gerais ao mercado por meio de notas técnicas, como a Nota Técnica 054/2002-SCG, que delineava os conceitos considerados pela agência no cálculo das tarifas. Essa falta de regulamentação específica deixava margem para interpretações e negociações, nem sempre resultando em um ambiente de negócios transparente e previsível.
A Resolução ANP 29/2005 foi a primeira norma a abordar o tema, mas ainda de forma superficial. Ela apenas estabelecia que as tarifas aplicáveis deveriam ser comunicadas ao regulador e divulgadas ao mercado, sem exigir aprovação prévia da agência ou a apresentação de documentação de suporte. Foi somente com a Lei 11.909/2009, que introduziu a necessidade de aprovação prévia das tarifas de transporte pela ANP e, consequentemente, a apresentação dos estudos que embasam a proposta de tarifa, o que só veio a ser regulamentado cinco anos depois por meio da Resolução ANP 15/2014. É crucial notar que tanto a Lei 11.909/2009 quanto a Resolução ANP 15/2014 preservaram as tarifas de transporte e os critérios de revisão previamente acordados, promovendo o respeito aos contratos em linha com a diretriz da Resolução CNPE 03/2022.
**Precedentes (TBG e TSB) de Uso do Custo Histórico Corrigido pela Inflação (CHCI) para Definição da BRA**
A Resolução ANP 15/2014 define que a Base de Remuneração de Ativos (BRA) dos gasodutos em operação pode ser calculada por meio de uma das seguintes metodologias: (i) Custo Histórico Ajustado pela Inflação, que consiste em determinar o valor atual dos ativos com base no custo original de aquisição, corrigido pela inflação e deduzido da depreciação acumulada; (ii) Custo de Reposição Depreciado, que calcula o custo para construir um novo ativo, subtraindo a depreciação acumulada; ou (iii) qualquer metodologia alternativa amplamente reconhecida e adotada pelo mercado, descontada a depreciação e a amortização.
Nos processos de revisão da BRA da TBG (Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil) e da TSB (Transportadora Sul Brasileira), a ANP adotou consistentemente a metodologia do Custo Histórico Ajustado pela Inflação (IGPM), um critério previsto em regulação e amplamente reconhecido pelo mercado. As Resoluções de Diretoria nº 604/2020 e nº 634/2023 demonstram a preferência da ANP por essa metodologia, que busca equilibrar a remuneração justa dos investimentos com a modicidade das tarifas para os consumidores. Essa escolha sinaliza uma busca por previsibilidade e segurança jurídica, elementos cruciais para atrair investimentos de longo prazo no setor.
**Depreciação de Acordo com a Vida Útil dos Ativos**
Ao longo de mais de duas décadas, a ANP tem consistentemente reconhecido que o prazo de depreciação deve refletir o máximo possível a perda de valor econômico e a vida útil dos bens, defendendo que um prazo de 30 anos é adequado para a depreciação de um gasoduto. Essa visão está alinhada com as melhores práticas internacionais e garante que os investimentos sejam adequadamente remunerados ao longo da vida útil dos ativos. Reduzir artificialmente o prazo de depreciação poderia levar a tarifas mais altas no curto prazo, desincentivando novos investimentos e comprometendo a expansão da infraestrutura de gás natural.
Nesse sentido, a Nota Técnica 054/2002-SCG, principal diretriz para o cálculo das tarifas vigentes na celebração da maioria dos Contratos Legados, previa duas formas de estruturar o cálculo da tarifa de transporte: (i) um fluxo de caixa com um número de períodos correspondente à vida útil da infraestrutura de transporte; ou (ii) um fluxo de caixa com um número de períodos menor do que a vida útil, mas considerando um valor residual ao final do fluxo. Além disso, a ANP já se manifestou que não há uma relação direta e unívoca entre o prazo de um contrato de transporte e o prazo de depreciação dos ativos. Portanto, o término da vigência dos contratos de serviço de transporte não implica necessariamente a inexistência de saldo de investimento a ser recuperado.
**Demonstrações Financeiras como Fonte Confiável**
A ANP reconhece a importância das demonstrações financeiras como uma fonte confiável para determinar a valoração de ativos de transporte, uma vez que são auditadas por auditores independentes, seguindo critérios contábeis amplamente reconhecidos pelo mercado. Essa confiança nas demonstrações financeiras como um reflexo da realidade econômica dos ativos é fundamental para garantir a transparência e a credibilidade do processo de revisão tarifária. Ignorar as demonstrações financeiras em favor de avaliações internas ou outros critérios subjetivos abriria espaço para manipulações e decisões arbitrárias, prejudicando a segurança jurídica e a confiança dos investidores.
Em sua Nota Técnica 007/2018-SIM, a agência concluiu que a prática contábil adotada pelo transportador ao longo do tempo “constitui um fato consumado a produzir seus efeitos” para definição da receita máxima permitida. Essa declaração reforça o compromisso da ANP em basear suas decisões em dados objetivos e auditados, em vez de especulações ou projeções incertas. Ao reconhecer o valor das demonstrações financeiras, a ANP demonstra seu compromisso com a solidez e a previsibilidade do mercado de gás natural.
**Avaliações Internas não Possuem Valor Regulatório**
A ANP, consistente com sua postura de adotar dados de realidade extraídos das demonstrações financeiras, tem se posicionado no sentido de que discussões internas, atos preparatórios e avaliações econômicas realizadas no âmbito de negociações privadas servem apenas para embasar a tomada de decisão dos agentes econômicos envolvidos. Esses elementos não devem produzir efeitos perante terceiros nem serem utilizados como evidência suficiente para determinar um processo de revisão tarifária. A agência busca, com essa postura, evitar que as tarifas sejam influenciadas por interesses particulares ou por avaliações subjetivas que não refletem o valor real dos ativos.
Não se deve, portanto, confundir avaliações econômicas feitas no âmbito de operações de compra e venda de empresas ou de financiamento com memórias de cálculo aptas para serem utilizadas no contexto de uma revisão tarifária. Caso as tarifas fossem alteradas com base nesse tipo de avaliação, elas também poderiam estar sujeitas a aumentos, dependendo dos termos das avaliações feitas por cada agente e da negociação privada entre eles. Isso poderia gerar debates sobre a adequação e eficiência dessa medida para fins de regulação tarifária. A ANP, ao desconsiderar avaliações internas, busca garantir que as tarifas sejam justas e transparentes, beneficiando tanto os consumidores quanto os investidores.
Futuras Perspectivas: Entre a Busca por Preços Competitivos e a Segurança Jurídica
Ainda que importantes avanços no mercado de gás tenham ocorrido nos últimos anos, como o aumento da concorrência e da transparência, é essencial que autoridades e agentes de mercado permaneçam vigilantes e ativos na construção de um mercado de gás com maiores níveis de competição e segurança para investimentos. Essa construção deve levar a preços mais competitivos de forma estrutural, o que só é possível por meio do respeito às regras aplicáveis ao processo de revisão tarifária e às boas práticas de contabilização e avaliação de ativos regulados.
A busca por preços mais competitivos e pela atração de novos investimentos é legítima e necessária, mas deve ser conduzida com cautela e equilíbrio, em conformidade com as regras do jogo. Como Frei Lourenço advertiu ao impulsivo Romeu: “Chegar rápido demais é tão errado quanto chegar tarde”. A moderação e a análise cuidadosa são fundamentais para evitar decisões que, embora bem-intencionadas, possam ter consequências negativas para o mercado de gás a longo prazo. A segurança jurídica e a previsibilidade regulatória são pilares essenciais para atrair investimentos e garantir um futuro próspero para o setor.
Última atualização em 31 de maio de 2025